29/10/2011

Esses Loucos Ingleses!

Rugby é uma cidade de pouco mais de 60 mil habitantes no condado de Warwickshire no oeste da Inglaterra. Foi na conceituada Rugby School que a viúva Ellis matriculou seus dois filhos. Um deles, William, que gostava de críquete, certo dia no ano de 1823 participou de uma partida de futebol. O futebol existe praticamente desde que alguém inflou um estômago de boi e resolveu jogá-lo para outra pessoa. Na história da Inglaterra medieval jogava-se cidade contra cidade, quilômetros de jogadores tentando passar a bola pelos portões do adversário. O futebol chegou a ser proibido pela violência das partidas. Brigas e mortes por esfaqueamento eram normais então. Uma versão mais civilizada já era jogada no início do século XIX. Era permitido pegar a bola com as mãos, como no Rugby atual, mas só para chutar a bola para frente. Willliam, talvez enfadado pela partida, resolveu pegar a bola com as mãos, colocá-la sob os braços e sair correndo. Os outros jogadores tentaram impedir de todas as formas seu avanço até a meta adversária. Foi nesse dia que nasceu a lenda de William Webb Elis, e o nome que seria dada à esta então variação do futebol, o Rugby Football.

 Campinho onde o William se destrambelhou
e inventou o Rugby

Em 1863 quando as diversas escolas e universidades da Inglaterra decidiram unificar as regras do futebol, Rugby e outras variáveis de futebol conviviam pacificamente. Foi em 1871 quando a Football Association decidiu banir o tackle e proibir o avanço do jogador com a bola nas mãos que representantes de 21 times se reuniram em Londres e decidiram pelo racha fundando a Rugby Football Union. O primeiro jogo internacional foi realizado ainda em 1871, a regra de então era 20 jogadores pra cada lado, para um público de 4 mil pessoas em Edimburgo, e vencido pela Escócia por 1 gol e 1 try contra 1 try da Inglaterra. Na época ainda não se utilizava a marcação por pontos. Por conta de uma rusga sobre a marcação de um try num jogo entre Inglaterra e Escócia em 1884, Gales, Irlanda e Escócia fundaram a IRFB, International Rugby Football Association, e a Inglaterra demorou mais uma década para aceitar a nova entidade.

 English Team de 1871
Bigode não era regra, mas era maioria

Toda essa história é porque para falar sobre a seleção inglesa de Rugby e o esporte no país é preciso contar a história do próprio esporte. Se o futebol sempre existiu de diversas maneiras em outras épocas da humanidade, o Rugby é uma evolução do futebol, ao contrário do que muitos imaginam. O futebol se concentrou no que o seu próprio nome diz, jogo com os pés. No Rugby se joga mais com as mãos, mas também com os pés. Felipe Contepomi, abertura e capitão dos Pumas, se utliza muito dos pés para avançar em direção ao try ou desenroscar uma disputa de bola. Ainda não descobri se é permitido se utilizar do cabeceio, para trás, claro, para cortar um avanço adversário, mas seria bem fora do padrão das jogadas.

Como no Rugby todos os times jogam com as posições nas mesmas numerações, não existem variações de esquemas como no futebol. Os times se preparam muito mais em cada jogador cumprir sua função e ter uma estratégia que pode ser alterada com o jogo em andamento do que sobrepor as individualidades sobre o grupo. O capitão de cada equipe é que direciona a estratégia a ser utilizada. Tentar avançar para o try, provocando fases em cima de fases, se defender e trabalhar falhas na linha adversária para contratacar, etc.

A Inglaterra é a maior vencedora da mais antiga competição entre nações do Rugby: a Home Nations (hoje Six Nations). Originalmente um torneio entre os quatro países das ilhas britânicas, depois teve incorporada a França quando passou a se chamar Five nations, e a configuaração atual com a Itália como sexta participante. Os ingleses venceram 26 de um total de 111 torneios. Nos confrontos com outras seleções a Inglaterra perde somente para os três grandes do Sul: África do Sul, Nova Zelândia e Austrália. Contra todos os outros adversários a Inglaterra é preponderante. Não é por nada ser a única seleção do hemisfério norte a vencer uma Copa do Mundo, numa sensacional final em 2003 contra a Austrália. Nos jogos contra a Escócia o vencedor leva a Calcutta Cup. Já contra a Irlanda disputa-se o Millennium Trophy. O confronto entre franceses e ingleses é chamado de Le Crunch. Se uma equipe britânica vencer as outras três dentro de um Six Nations conquista o Triple Crown. Se um país vence todos os adversários do Six conquista o Grand Slam. De tempos em tempos os países do Tri Nations desafiam todos do Six Nations e esta turnê também se denomina Grand Slam.

 Jonny Wilkinson faz um drop goal faltando 20 segundos
para o fim da prorrogação e os ingleses vencem 
por 20-17 a final da Copa de 2003


Os ingleses jogam preferencialmente com uniforme todo branco, por ser a cor do uniforme da Rugby School, e uma enorme rosa vermelha bordada sobre o peito é utlizada desde a primeira partida em 1871. O estádio oficial da Inglaterra é o Twinckenham Stadium, construído a partir de 1907,  foi constantemente ampliado até chegar a capacidade atual de mais de 82 mil espectadores, sendo menor apenas que Wembley no país e o quarto maior da Europa. Foi neste estádio que os ingleses foram batidos por 12-6 pela Austrália na final da Copa de 1991.

Swing Low, Sweet Chariot é uma canção criada por escravos libertos que moravam no território da nação Choctaw nos Estados Unidos e viajou pelo país e pela Europa em turnês de músicos folclóricos. Nos anos 1960 voltou à tona por conta dos movimentos por direitos civis nos EUA. Foi gravada desde Etta James, Elvis Presley, Glen Miller até UB40, Beyoncé, entre outros. Você deve estar se perguntando que porra tudo isso tem a ver com Rugby. Mas tem. No fim do século XIX e início do XX a canção gospel americana se popularizou de tal forma que jogadores de Rugby ingleses nas confraternizações regadas à cerveja pós jogo, também largamente conhecido como terceiro tempo, extravasavam cantando e dançando esta música, tendo Swing Low, Sweet Chariot praticamente se transformado num hino informal da torcida inglesa de Rugby.

Pois bem. No último jogo da temporada de 1988 a Inglaterra perdia por 3-0 para a Irlanda. Nos dois anos anteriores jogando em sua casa a Inglaterra tinha feito apenas UM try e nas últimas 23 partidas do Five Nations tinha vencido apenas 8. Resumindo, a moral da equipe da torcida estava mais embaixo que o cocô do cavalo do bandido. Com dois titulares lesionados, sobrou para Chris Oti, de origem nigeriana e primeiro jogador negro depois de muitos anos, a tarefa de salvar a pátria. Então ele pegou a bola e correu, correu. Try. O primeiro de três. Era primeira vez desde 1924 que um hat-trick acontecia no estádio num jogo oficial. Ao final do terceiro try um coral de estudantes de um colégio beneditino puxou a música Swing Low, Sweet Chariot e foi acompanhado por todo estádio. Na sequência a Inglaterra marcou mais outros três tries, sendo o recorde de tries da Inglaterra num só tempo batido depois de 50 anos, e venceu o jogo por uma hora antes inimagináveis 35-3 sobre os irlandeses. O hino agora era lenda.

 Estádio silencia haka em 2010

Desde então do mais obscuro pub inglês até as arquibancadas Twickers todo torcedor inglês canta Swing Low, Sweet Chariot para empurrar sua equipe ou a seleção nacional. Os exemplos são tantos que fico com alguns para quantificar a potência do hino não-oficial. Em 2003 logo após a conquista da Copa do Mundo antes de uma partida de futebol entre Arsenal e Birmingham as torcidas de ambas equipes cantaram o hino em homenagem a seleção de Rugby campeã mundial. Em 2010 contrapondo o haka a torcida inglesa calou o canto maori dentro de seu estádio. A partida não foi vencida, mas o que faz um torcedor de Rugby não é só vencer sempre. É continuar lutando para vencer. Nem que seja um try depois de anos. Nem que seja na última hora. Nem que seja tão somente por continuar tentando. Os ingleses entendem bem disso. Não desistem nunca. E cantam e comemoram a plenos pulmões gesticulando com seus pints de Guinness erguidos ao alto como se estivessem navegando pelos mares do Império Britânico de outrora e conquistando povos bárbaros

Torcedores ingleses felizes em Lens após
a vitória de 28-10 contra os EUA na estreia
na Copa do Mundo de 2007

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