Em Porto Alegre o dia amanhecia gelado e nebuloso.
A cerração baixa fazia com que os automóveis ligassem os faróis.
O dia se deixava vislumbrar sombrio, mas à medida que subíamos a
serra até Bento Gonçalves a temperatura subia e o sol se abria com
toda a força que consegue manifestar em uma manhã de julho abaixo
dos trópicos no hemisfério sul. Certo que cochilei após o almoço
e decidi, sozinho, caminhar até a Montanha. Um porto-alegrense de 41
anos, que visita regularmente Bento desde 2004, mas ainda não
conhece os atalhos para fugir das piores lombas, como carinhosamente
chamamos subidas íngremes aqui pelas bandas do paralelo 30. Pouco
mais de um mês depois de voltar à uma academia e aos treinamentos
na musculação, atividade que me dediquei regularmente de 1999 até
2005 e que abandonei para me dedicar a outra atividade, bem mais
onerosa e cansativa, mas recompensadora em todos os sentidos, a de
ser pai do Lorenzo, fui eu, passada forte, encarar os sobe-e-desces
da capital do vinho gaúcho.
Na metade da segunda lomba, a mais íngreme de
todas, ao lado do estádio da Montanha (porque vocês acham que ele
tem esse nome?), literalmente botei os bofes pra fora. Os gritos da
organizadas do Farrapos, os Los Farrapos, uma língua rollingstoniana
verde é o seu símbolo, me impulsionaram a encarar a segunda metade
da subida, já implorando para chegar ao final dela vivo. Inteiro eu
não estava. Fui direto ao bar e, como nunca, pedi uma garrafa de
água. Sem gás. O blusão de lã que antes me aquecia agora me
sufocava. O gás me faria explodir.. Olhei para o placar que marcava
3-0 para o Farrapos contra o Desterro, a vibração que me deu forças
para terminar minha via crucis de torcedor de Rugby, a água
recobrando minhas forças e o caminho até às velhas arquibancadas
do antigo estádio de futebol.
O sol, forte como nunca em uma tarde de julho em
Bento, esquentava a partida, e o Desterro, se aproveitando de uma
desatenção, a primeira da tarde, da linha farrapa, marcou o seu
primeiro try, não convertido, e estabeleceu o 5-3 no placar. O
Farrapos estreava sua camisa alusiva a Revolução Farroupilha, num
jogo contra um dos dominados da revolta gaúcha do século XIX, era
como se o passado viesse assombrar os generais rebeldes. O sol quente
era um aviso dos céus, impenetrável. O grupo rio-grandense tentava
manter a pegada e jogar com a contundência de quem se exibia em
frente ao mais fiel público de Rugby do Super10. A barra pulava e
cantava sem parar, os bumbos espoucando e dando ritmo ao time. Do
outro lado do estádio, a torcida aparentemente mais calma, formada
por familiares, crianças e muitos curiosos, alguns até sem nem
mesmo compreender muitas das regras do esporte bretão, gêmeo
bivitelino do futebol, gritava incentivando o clube a buscar seu try.
Impulsionado pelo sol o Desterro chegou ao segundo
try enquanto o Farrapos se desgastava em tentativas frustradas de
tries, fases sobre fases, rucks sobre rucks, o time catarinense
chamando as forças do Império e, estrategicamente, fugindo dos
scrums farrapos, base de sua força e prevalência moral. E assim o
primeiro tempo terminou, 10-3 para o Desterro. Decidi, como todo bom
supersticioso, trocar de lado de arquibancada. Obviamente não
influenciaria em nada no resultado da partida, como também a
torcedora de seus 60 anos não alteraria nada, casaquinho em punho,
berrando na grade, “vamos farapo”, com a entonação e os erres
característicos da fala do povo de Bento. Eu, já só de camiseta,
aproveitava o curto intervalo para armazenar minha mente de álcool,
única decisão sensata para espantar o azar, ou a noção de
realidade, e deixar com que as sombras das nuvens que se amontoavam
abaixo do sol iluminasse os jogadores do Farrapos. E assim foi.
Mais consistente, brigando por espaços e
batalhando à gaúcha, corpo-a-corpo intenso, avançavam sobre as
forças imperialistas, quer dizer do Desterro, Garibaldis empurrando
um navio pelas dunas de Laguna, as nuvens trazendo um pouco do clima
gélido das plagas nos fins de julho, e o astro-rei, obviamente
monarquista, se contorcia à busca de um Caxias para lhe ajudar a
aniquilar as forças de Bento Gonçalves. Enquanto as forças das
sombras dominaram a Montanha, o Farrapos voltou a ter mais posse de
bola, marcar em cima as tentativas de contra-ataques rápidos do
Desterro, e impondo um try convertido e forçando, dentro da linha
dos 22, os catarinenses a cometerem falta. Um adversário pressionado
sempre comete mais faltas, pois no Rugby, o que parece simples não
é. Claro que a qualidade do passe é importante, a inteligência nas
mudanças de lado, nas quebras de linha, nos dribles, na jinga, a
arte de escapar tal qual um muçum, peixe escorregadio da região e
nome de uma cidade próxima, mas a marcação, a defesa, exige
atenção máxima, o olhar fixo, como a esperar para dar o bote certo
no tackle, a corrida no momento certeiro e a aposta na
imprevisibilidade da oval ao tocar o chão em sua trajetória
irregular e ao mesmo bela.
A bola de Rugby é como aquela mulher, tentadora,
persuasiva, que nos faz correr atrás dela como bobos. Parece que vai
para um lado e vai para o outro. Resvala, nos faz cometer erros
imperdoáveis, cai para frente, tonto, o jogador tateia no espaço
vazio à procura da bola e ela, zombeteira, cai em mãos alheias. Nos
breves momentos em que a colocamos embaixo do braço, aconchegada sob
a asa, ela é nossa, de mais ninguém. O try orgasmático da vitória,
como se fosse um esperma insano tentando adentrar o óvulo matreiro,
a oval só atinge seu objetivo quando prensada sobre o ingoal
adversário. Só assim, subjugada, ela se entrega e beija o solo, até
a próxima jogada, quando volta a ser como sempre foi. Traiçoeira.
Imprevisível. Desafiadora.
O 13-10 a favor no placar acalmava a torcida que
agora cantava a pleno. A torcedor sessentona aliviada, sentava-se a
observar. Parecia questão de tempo segurar as investidas do time de
Florianópolis e tentar converter um try ou um ou dois penals para,
pelo menos, garantir a vitória, mesmo que mínima. Mas as sombras
que traziam o frio se desformaram, assim como as forças da defesa
farrapa, e Bento Gonçalves começou a sofrer as baixas de um
exército que se exaurira numa ferrenha batalha corporal. Os
jogadores catarinenses se aproveitavam destes momentos e disparavam
pelos flancos da linha de Bento convertendo trys na metade do segundo
tempo. A torcida, como que pega de surpresa, tentava reagir com
gritos esparsos. O sol era negro e as sombras se perdiam no
horizonte, A tarde quente trazia o desalento do silêncio ao apitar
final do juiz. O Farrapos ainda lutava, como em tantas outras vezes
naquela partida, por um trabalhoso try de fases, frustrado por um
erro, um knock-on, embolamento que cega o árbitro, a oval que beija
outro na saída da festa. 27-13, ponto bônus para o Desterro e a
certeza que algo poderia ter saído melhor.
Um resto de cerveja quente amargava na minha lata.
Restava-me juntar aos soldados combalidos e, entre abraços e
demonstrações de amizade, sorrir na desgraça. Os verdadeiros
amigos se conhecem na derrota. Quem vive sempre sob o sol não sabe
que é nas sombras que se encontram forças para seguir em frente.
Nos meus delírios noturno se desenhava a verdade do Rugby no fundo
do copo. Saber que não escolhemos amigos ou inimigos, mas escolhemos
as ideias com que farão com que uns sejam amigos e outros, não.
Quem escolhe o Rugby não escolhe inimigos. Que venham os paulistas!
Um comentário:
Parabéns pelo texto.
Eu como torcedor do Desterro tenho que admitir que o li com um sorrisinho de canto de boca, feliz em ver meu time protagonista e vencedor desta batalha, epicamente descrita no texto.
Parabéns ao Farrapos por sua torcida e pela equipe, que cada vez mais disputa de igual para igual contra os grandes do Brasil.
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